Mais uma vez, a depressão não é "baixa serotonina" no cérebro
A ampla revisão empreendida por Joanna Moncrieff e colegas é uma pá de cal sobre a fantasiosa teoria de que a depressão é causada por baixas taxas de serotonina. Um debate fundamental.
As pessoas deveriam estar tomando a decisão de tomar antidepressivos baseadas no que é conhecido a respeito das drogas em vez das histórias fantasiosas propagadas por seus fabricantes.
Essa reivindicação simples e elementar figura em um texto de Joanna Moncrieff e demais pesquisadores1 como parte de um debate a respeito dos antidepressivos e seus mecanismos de ação.
A coisa “começou” (e aqui coloco as aspas porque há décadas Moncrieff e demais pesquisadores se dedicam a demolir os mitos sobre as drogas psiquiátricas) quando estes pesquisadores publicaram uma revisão sistemática das evidências sobre a teoria da serotonina na depressão2. Se é que algum leitor desavisado nunca ouviu falar dessa teoria, hoje tão popular como um lançamento recente da indústria cultural, ela promove a ideia de que a depressão teria como causa uma baixa taxa de serotonina no cérebro. Contei um pouco da história dessa ideia aqui.
Mas, mesmo tendo sido cientificamente desbancado há décadas, esse “conto de fadas” feito sob medida para render bilhões de dólares à indústria farmacêutica persiste não apenas como um mito popular, mas inclusive reivindicando o status de uma teoria científica, pois não querem jogar fora essa “galinha dos ovos de ouro” até que ela sofregamente bote seu último ovo.
É isso, e apenas isso, que justifica o admirável esforço dessa equipe de pesquisadores em reunir 17 estudos de grande envergadura para mais uma vez fazer uma extensiva análise da já cientificamente derrotada hipótese serotoninérgica da depressão.
Não vamos desenvolver aqui os diversos efeitos tóxicos da serotonina, mas, remetemos aos artigos de G. M. Fontes, que afirma que “O senso comum médico tem a serotonina como ‘hormônio da felicidade’. Esse mesmo senso comum não enxerga o quanto a serotonina promove doenças e até ansiedade.”3 Vale a pena conhecer os malefícios em diversos âmbitos da saúde causados pela serotonina.
A revisão empreendida por Moncrieff e colegas aborda a questão da teoria serotoninérgica da depressão por diversos lados e formas de procurar estudá-la, concluindo que a extensiva análise realizada “demonstra que não há evidência convincente de que a depressão é associada a, ou causada por, baixa atividade ou concentração da serotonina”.
No entanto, após a publicação do artigo, um grupo de pesquisadores liderados por Sameer Jauhar escreveram uma resposta4 cujo título já afirma que “as evidências claramente indicam que o sistema da serotonina está implicado na depressão”. Os autores, por um lado, mantém sua postura ambígua, “em cima do muro”, ao declararem que deixarão de lado “preocupações em relação ao antiquado conceito de um polimorfismo baseado em um único gene e a atual visão sobre a arquitetura poligênica do Distúrbio de Depressão Maior (DDM) e a discussão sobre a eficácia dos antidepressivos em uma revisão que não apresentou tais dados” para apontar apenas as “fraquezas metodológicas” da interpretação de dados feita pela equipe de Moncrieff.
Esse trecho é uma síntese dos métodos espúrios utilizados: querem defender a teoria serotoninérgica, mas tendo como “reserva” o sempre eficaz dogma de uma genética indeterminada como a fonte de toda a determinação humana. Ou seja, vamos falar um monte de abobrinhas para defender uma teoria indefensável, mas caso você perceba que são abobrinhas, saiba que há muito mais mecanismos de confusão para tentar desviar o foco e salvar o que importa no fim das contas: a defesa de uma obscura e semirreligiosa hipótese genética e bioquímica que serve de salvaguarda para vendermos remédios como “pílulas mágicas” para resolver todos os problemas subjetivos.
A montanha de supostos “problemas metodológicos” apontados pela carta é um método antigo: as grandes empresas contratam cientistas mercenários que criam estudos intencionalmente falhos metodologicamente e questionam os que são bem feitos para semear a confusão quando não é possível refutar dados sólidos.
Uma descrição precisa do que hoje fazem esses mercenários “cientistas” em defesa da indústria farmacêutica, e uma bela demonstração disso é a declaração de conflito de interesses dos autores da carta ao final do texto: atividades vinculadas ou patrocinadas e até mesmo propriedade de ações em empresas como Janssen, Ludbeck, Sunovian, Boehringer Ingelheim, LB pharmaceuticals Inc., Idorsia, J&J, Novartis, P1vital Ltd., CHDR, COMPASS Pathways, Medscape, Mydecine, Entheon Biomedical, Clerkenwell Health, Smallpharma Ltd., Field Trip Health Ltd., Angelini, Menarini, Mindstrong, Proxymm Science, Evapharma, Novartis, Eli Lilly, Heptares, Global Medical Education, Invicro, Roche, EMS, Daiichi-Sankyo e um longo etc.
Claro, só porque receberam alguns milhões das empresas cujas drogas são vendidas com base na teoria serotoninérgica da depressão, criando clientes vitalícios, isso não quer dizer que não serão isentos ao avaliar uma revisão que desbanca essa teoria. Ou quer? Fica aí a dúvida para você responder, caro leitor.
O mesmo método de instilar a confusão onde não é possível refutar argumentos e evidências foi utilizado na carta enviada por Bartova e demais5: os pesquisadores afirmam que a revisão empreendida por Moncrieff foi feita com base em “literatura selecionada cobrindo exclusivamente a serotonina e, portanto, tratando de apenas uma parte do complexo entendimento da depressão”, e, no entanto, logo em seguida dizem que “uma meta-análise revelando a dinâmica espacial-temporal da transmissão serotoninérgica na depressão destaca o fato de que a serotonina representa uma fundação crucial mas dinâmica da depressão”6.
Ou seja, como na carta anterior, afirmam que “é mas não é” a serotonina a responsável, esquivando-se por trás de “mecanismos muito complexos” que supostamente são demonstráveis, mas, por sua complexidade, não são demonstrados…
A resposta de Moncrieff e demais autores da revisão veio prontamente7, não à toa sob o título que poderia ser traduzido como “A hipótese serotoninérgica da depressão: tanto longamente descartada como ainda apoiada?”, referindo-se precisamente a essa ambiguidade intencionalmente confusa das cartas que os responderam. Como afirmam, “as cartas pintam um retrato confuso do status da teoria da serotonina. Por um lado, se argumenta que foi há muito tempo abandonada, por outro, que é válida e que deixamos de fora alguns estudos, e alguns autores argumentam em favor destes dois pontos de vista”.
A confusão que se procura criar, como uma nuvem de fumaça para tentar impedir que as pessoas vejam a farsa em torno da teoria da serotonina, é explicada pelos autores: “Enquanto aparentam ser científicas, as hipóteses proferidas são tão vagas e inclusivas que se tornam completamente intestáveis8, tal como a alegação de que ‘o sistema da serotonina é perturbado’9”.
Não entraremos aqui nos complexos meandros metodológicos que são detidamente explicados, refutando as objeções apresentadas nas cartas. Mas vale mencionar alguns argumentos a mais sobre a lógica de como encarar a questão. Moncrieff e demais argumentam que, se pode ser razoável considerar uma categoria de drogas que aumenta a atividade da serotonina para lidar com uma condição causada por sua baixa (caso isso fosse comprovado, o que não é…), ainda assim “nós poderíamos sensatamente nos preocupar com os efeitos que modificam o sistema complexo e pouco compreendido da serotonina, considerando a ausência de uma evidência clara de uma anormalidade específica subjacente”.
Os efeitos dessas modificações já são há décadas evidentes quando pensamos no fenômeno conhecido como “tolerância”, que consiste numa adaptação do cérebro à ação da droga no sentido de buscar uma homeostase, ou seja, um equilíbrio no organismo que foi perturbado pela ação da droga - mostrando assim que está de ponta cabeça o esquema segundo o qual as drogas “corrigem” um estado neuroquímico anormal, quando a verdade é o oposto: elas criam uma anormalidade que o próprio corpo procura combater. Assim, quando a droga é interrompida, vem à tona os terríveis efeitos de abstinência - entraremos mais a fundo nesse debate em outros textos.
Além disso, a resposta refuta o absurdo argumento tautológico (ou seja, que opera numa lógica circular onde uma proposição justifica a outra) de que a “serotonina deve estar envolvida na depressão porque drogas que atingem o sistema serotoninérgico são eficientes, e outros autores argumentam também que os antidepressivos ‘funcionam’”.
Nesse sentido, apontam estudos que demonstram que os antidepressivos apresentam diferenças clinicamente irrelevantes em relação ao placebo, e sua diferença por ser decorrente do efeito placebo ampliado devido às falhas no cegamento dos estudos (tema para outro texto).10
Também refutam o argumento de Bartova e demais de que os antidepressivos reduzem os suicídios, e apresentam estudos que sugerem que eles os aumentam em determinados grupos etários (algo que já era possível saber desde os testes clínicos manipulados do Prozac, como lembrei aqui)11.
Outro argumento fundamental elencado na resposta é o de que os antidepressivos são substancias psicoativas, que produzem efeitos sedativos e de apatia em relação às emoções12 mesmo em voluntários sem nenhum diagnóstico clínico de depressão13. A diminuição de sintomas depressivos - que nos estudos são medidos por meio de testes com pontuações - pode se dar exclusivamente por tais efeitos não-específicos e, como afirmam os pesquisadores, “uma explicação tão óbvia deve ser excluída antes que hipóteses infundadas, tais como as de que os antidepressivos afetam anormalidades em neurotransmissores, neurogênese, inflamação ou redes neurais sejam adotadas”.
Por fim, é incontornável a conclusão dos autores, baseada no princípio elementar da bioética do consentimento esclarecido, ou seja, de que os pacientes devem eleger livremente a forma de tratamento tendo plena consciência dos efeitos adversos, potenciais perigos e benefícios de cada droga a partir do que há de conhecimento científico disponível. Assim, afirmam que “do ponto de vista do público tomar uma droga que se acredita que reverta um desbalanço químico subjacente ou outra anormalidade cerebral é uma perspectiva bem diferente de tomar uma droga que perturba a química cerebral de formas completamente desconhecidas e potencialmente imprevisíveis, com efeitos pouco pesquisados sobre o humor e o comportamento, e o entorpecimento emocional emergindo como um claro efeito. No entanto, essa enfoque de propagandear as drogas se baseando em hipóteses implausíveis e não comprovadas de neurotransmissores únicos para fornecer uma justificativa biológica continua ocorrendo em ritmo acelerado.”
Por isso, tornar amplamente conhecido o fato de que a teoria da serotonina na depressão não se sustenta é defender o direito de que as pessoas conheçam e decidam sobre sua saúde mental sem serem presas fáceis das historinhas fantasiosas que contam para induzir que tomem substâncias perigosas acreditando que são “pílulas mágicas” contra o mal-estar subjetivo.
Placebo e placebo ampliado
tolerância e homeostase
abstinência
Moncrieff, J., Cooper, R.E., Stockmann, T. et al. The serotonin hypothesis of depression: both long discarded and still supported?. Mol Psychiatry (2023). https://doi.org/10.1038/s41380-023-02094-z
Moncrieff, J., Cooper, R.E., Stockmann, T. et al. The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence. Mol Psychiatry (2022). https://doi.org/10.1038/s41380-022-01661-0
Abaixo, links para os textos sobre serotonina do blog “Outra Medicina”, de autoria do médico G. M. Fontes:
Jauhar, S., Arnone, D., Baldwin, D.S. et al. A leaky umbrella has little value: evidence clearly indicates the serotonin system is implicated in depression. Mol Psychiatry (2023). https://doi.org/10.1038/s41380-023-02095-y
Bartova, L., Lanzenberger, R., Rujescu, D. et al. Reply to: “The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence” published by Moncrieff J, Cooper RE, Stockmann T, Amendola S, Hengartner MP, Horowitz MA in Molecular Psychiatry (2022 Jul 20. doi: 10.1038/s41380-022-01661-0). Mol Psychiatry (2023). https://doi.org/10.1038/s41380-023-02093-0
Gryglewski G, Lanzenberger R, Kranz GS, Cumming P. Meta-analysis of molecular imaging of serotonin transporters in major depression. J Cereb Blood Flow Metab. 2014;34:1096–103.
Moncrieff, J., Cooper, R.E., Stockmann, T. et al. The serotonin hypothesis of depression: both long discarded and still supported?. Mol Psychiatry (2023). https://doi.org/10.1038/s41380-023-02094-z
Bartova et al. op. cit.
Jauhar et al. op. cit.
Munkholm K, Paludan-Müller AS, Boesen K. Considering the methodological limitations in the evidence base of antidepressants for depression: a reanalysis of a network meta-analysis. BMJ Open. 2019;9:e024886.
Horowitz M, Wilcock M. Newer generation antidepressants and withdrawal effects: reconsidering the role of antidepressants and helping patients to stop. Drug Ther Bull. 2022;60:7–12.
Jakobsen JC, Gluud C, Kirsch I. Should antidepressants be used for major depressive disorder? BMJ Evid-Based Med. 2020;25:130–130.
Sharma T, Guski LS, Freund N, Gøtzsche PC. Suicidality and aggression during antidepressant treatment: systematic review and meta-analyses based on clinical study reports. BMJ. 2016;352:i65.
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