A Sertralina, os suicídios e um caso de manipulação de dados
A publicação de alguns estudos sobre o antidepressivo Sertralina (Zoloft) é um do exemplos das manobras que a indústria farmacêutica faz para enganar as pessoas e manipular resultados.
A mitologia criada em torno da forma como vemos o mal estar subjetivo e psíquico - incluindo os diagnósticos e tratamentos psiquiátricos - não é algo fácil de sustentar. Só é possível que hoje esteja tão arraigada no senso comum a noção de que ficamos deprimidos por processos químicos e de que precisaríamos de drogas psiquiátricas para nos “curar” porque são gastos rios de dinheiro para manter essa crença viva.
Uma das formas importantes de fazer isso é manter os chamados “prescritores” (ou seja, os médicos) convencidos da eficácia dos produtos veiculados pela indústria farmacêutica. Afinal, são eles que vão “vender o produto” para os pacientes. E, para isso, os periódicos científicos são ferramentas fundamentais.
Esse é um tema amplo, que certamente será tratado por aqui muitas vezes. Mas hoje queria apenas trazer um exemplo contundente apresentado pelo psiquiatra David Healy a respeito de um popular antidepressivo, a Sertralina1.
Nos periódicos científicos, supostamente as publicações refletem pesquisas sérias feitas por pessoas comprometidas com a verdade. Infelizmente, na prática nada disso é assim. Hoje a maior parte dos artigos publicados nesses veículos é feito sob encomenda da indústria, escritos por “escritores fantasma” (ghost writers) e assinados por médicos renomeados, os chamados “formadores de opinião”, que frequentemente não colocaram uma vírgula no texto que assinam; apenas dão a glória do “medalhão” para a informação ali veiculada.
Falaremos aqui de artigos produzidos por uma empresa especializada em “informação médica” (sic) chamada Current Medical Directions (CMD), que em 1998 coordenou a produção e submissão em periódicos de uma série de artigos sobre o Zoloft - nome comercial da Pfizer para a Sertralina, cuja patente naquele momento era exclusiva da empresa.
David Healy, a partir de uma ação legal movida contra a Pfizer, teve acesso a um documento que listava o andamento, no início de 1999, de 85 artigos sendo produzidos pela empresa sobre o Zoloft.
No início de 2001, 55 deles já haviam sido publicados. Eles cobriam apenas as áreas de interesse comercial para a empresa, ou seja, para condições clínicas em relação às quais a Pfizer já obtivera uma licença legal para comercializar o remédio, ou aquelas em que pretendia obter brevemente.
Healy e Dinah Catell fizeram uma análise dos artigos sobre a Sertralina (Zoloft) publicados no período, comparando aqueles que eram promovidos pela CMD com os que não eram2.
A primeira questão acerca de estudos feitos sob a forma de ghostwriting ou mesmo estudos patrocinados pela indústria é que os autores não tem permissão para divulgar os dados brutos - e muitas vezes sequer têm acesso a eles, o que já coloca em xeque a própria validade dos dados utilizados. Os dados brutos de uma pesquisa são aqueles obtidos antes de qualquer tabulação, ou seja, os dados imediatamente coletados em uma pesquisa. No caso dos estudos patrocinados pela indústria, os dados são de propriedade da empresa e, portanto, sigilosos.
Dos artigos listados por Catell e Healy, 41 não tinham ligação com a CMD, e, destes, 3 receberam financiamento da Pfizer. Entre estes estudos, apenas 18 relataram achados positivos em relação aos resultados obtidos pelo uso de Sertralina (44%), enquanto 20 relataram resultados negativos e 3 relataram resultados ambíguos.
Dos 55 artigos relacionados à CMD, todos (isso mesmo, 100%) relataram resultados positivos no uso de Sertralina. Eles também apareceram em periódicos de maior impacto e geraram número maior de citações, mostrando que a influência da indústria pauta majoritariamente as publicações.
A análise que foi feita em relação aos dados brutos utilizados e os artigos finais ligados à CMD também mostra “discrepâncias significativas”, nas palavras de Healy. O autor aponta que: “Por exemplo, o conjunto de artigos da CMD contém seis nos quais o Zoloft foi dado a crianças com TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) ou depressão. Um destes artigos, publicados no JAMA (Journal of the American Medical Association) menciona uma criança que apresentou comportamento suicida. Os outros cinco artigos não mencionam suicidalidade como um dano potencial do Zoloft quando administrado em crianças. Um destes cinco artigos na verdade afirma que os autores estão relatando efeitos adversos que ocorreram em uma taxa de 10% ou acima3. No entanto, fica claro a partir de documentos internos da empresa que das 44 crianças que estavam deprimidas e tomaram Zoloft nessa série de estudos, quatro (9%) cometeram atos suicidas. Outro artigo, publicado no British Medical Journal4, relata um estudo no qual a sertralina foi comparada com mianserin e placebo. Os primeiros rascunhos do artigo mencionam que houve um suicídio e três tentativas de suicídio no grupo que recebeu sertralina, uma tentativa de suicídio no grupo que recebeu mianserin e nenhuma tentativa de suicídio de nenhum tipo no grupo que recebeu placebo. A versão final do artigo não menciona nenhum desses efeitos adversos.”5
Assim, o caso da sertralina analisado por Healy e Catell é um exemplo de como a indústria manipula estudos para omitir resultados negativos, incluindo comportamento suicida em crianças, e, por meio de escritores fantasmas e artigos falsificados, distorce os efeitos de drogas e induz ao erro os médicos. Voltaremos ao tema.
Healy, D. (2004). Shaping the Intimate: Social Studies of Science, 34(2), 219–245. doi:10.1177/0306312704042620
Healy, D., & Cattell, D. (2003). Interface between authorship, industry and science in the domain of therapeutics. The British Journal of Psychiatry, 183(1), 22-27. doi:10.1192/bjp.183.1.22
Alderman, J., R. Wolkow, M. Chung & H.F. Johnston (1998) ‘Sertraline Treatment of Children and Adolescents with OCD or Depression: Pharmacokinetics, Tolerability and Efficacy’, Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry 37: 386–94
Malt, Ulrik F., O.H. Robak, H.-B. Madsbu, O. Bakke & M. Loeb (1999) ‘The Norwegian Naturalistic Treatment Study of Depression in General Practice (NORDEP). I: Randomized Double Blind Study’, British Medical Journal 318: 1180–84.
Healy, op. cit. 2004, p. 231.