Pode ser uma depressão. Aí precisa tentar curar...
“Fica esperto sobre o que tá acontecendo com você, pode ser uma depressão. Aí precisa tentar curar de alguma maneira né?”
Foi o que me disse uma amiga, preocupada com meu estado de espírito. Achei interessante tentar pensar um pouco sobre o que está embutido nessa fala sobre como pensar essa questão.
Em primeiro lugar, que a depressão é uma coisa que “acontece” com a gente e ela precisa ser “curada”, né? Ou seja, é algo, de certa forma anômalo, uma doença que nos acomete, e requer algum tipo de intervenção específica que se dirija a este estado para curá-lo. Então, um pressuposto inerente a isso é que há um limite que é preciso traçar entre um estado de tristeza normal e algo patológico - a depressão - sendo o primeiro algo que provavelmente vai passar e o segundo uma doença que requer uma cura.
Pautado nessa concepção, um manual muito popular desenvolvido pela APA (American Psychiatry Association - Associação Americana de Psiquiatria) procura traçar critérios objetivos para poder fazer essa diferenciação: afinal, como sei se alguém está deprimido? O DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), em sua quinta versão revisada apresenta alguns sintomas como critérios para se estabelecer o diagnóstico:
A- Estar com cinco ou mais dos seguintes sintomas durante duas semanas:
humor deprimido a maior parte do dia (ex.: sente-se triste, vazio, sem esperança).
acentuada diminuição do prazer ou interesse em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia, quase todos os dias.
perda ou ganho significativo de peso sem estar fazendo dieta (ex.: uma alteração de mais de 5% do peso corporal em um mês) ou redução ou aumento do apetite quase todos os dias.
insônia ou hipersonia quase todos os dias.
agitação ou retardo psicomotor quase todos os dias
fadiga ou perda de energia quase todos os dias
sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inapropriada (que podem ser delirantes) quase todos os dias
capacidade diminuída para pensar ou se concentrar, ou indecisão, quase todos os dias
pensamentos recorrentes de morte (não apenas medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano específico, uma tentativa de suicídio ou plano específico para cometer suicídio.
B- Os sintomas causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
C- Os sintomas não devem ser efeitos fisiológicos de substância ou outra condição médica.
Há, em nota de rodapé, toda uma série de considerações relativamente arbitrárias sobre como diferenciar luto de depressão. Bom, deixemos isso de lado nesse momento e também considerações sobre o que significam termos como “funcionamento social”, ou ainda o fato de que, segundo o DSM, para fechar um diagnóstico esses estados de ânimo podem tanto ser relatados pelo paciente como por alguém outro… ou mesmo constatados da seguinte forma: “A tristeza pode ser negada inicialmente, mas pode ser revelada por meio de entrevista ou inferida pela expressão facial e por atitudes”, algo que dá um passo além na transferência da queixa das mãos da pessoa afligida para o médico, que avoluma seu poder de juiz sobre a normalidade ou a patologia…
Sem dúvida, estou enquadrado no “transtorno depressivo maior” do DSM, me encaixando em seus critérios diagnósticos. Mas o que isso quer dizer? Para a APA, o DSM significa um manual “ateórico” de doenças mentais. Ou seja, eles afirmam que, ao se basear em estatísticas e sintomas, e não em teorias que pensem as etiologias (as causas, origens) das doenças, estariam se livrando de uma visão enviesada por teorias particulares e apresentando uma espécie de catálogo “neutro” e “isento” das formas de adoecimento mental. Contudo, nesse mesmo manual pretensamente ateórico lemos considerações sobre as questões fisiológicas e anatômicas relativas à depressão:
“Embora exista ampla literatura descrevendo correlatos neuroanatômicos, neuroendócrinos eneurofisiológicos do transtorno depressivo maior, nenhum teste laboratorial produziu resultados de sensibilidade e especificidade suficientes para serem usados como ferramenta diagnóstica para esse transtorno. Até há pouco tempo, a hiperatividade do eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal era a anormalidade mais amplamente investigada na associação com episódios depressivos maiores e parece estar associada a melancolia, características psicóticas e riscos para suicídio subsequente. Estudos moleculares também implicaram fatores periféricos, incluindo variantes genéticas em fatores neurotróficos e citocinas pró-inflamatórias. Além disso, estudos de imagem de ressonância magnética funcional fornecem evidências de anormalidades em sistemas neurais específicos envolvidos no processamento das emoções, na busca por recompensa e na regulação emocional em adultos com depressão maior.”
Assim, embora descartem qualquer teoria psicodinâmica (ou seja, que pensa sobre o funcionamento mental especificamente), o DSM parece ávido por fornecer explicações fisiológicas mesmo que nenhum teste possa ser usado para confirmar as especulações e teorias apresentadas. É só pra manter a crença de que tudo tem a ver com causas orgânicas sobre as quais eles não consegem fornecer evidências. O maior exemplo disso é a tão popularizada teoria da serotonina, que explicaria que a depressão tem a ver com baixas taxas dessa amina tóxica, a 5-hidroxitriptamina (que tem mais de 90% de sua produção no intestino e uma comprovada toxicidade). Sobre esse tema, vale ler essa nota. No entanto, conforme repisado pela extensa análise de Joanna Moncrieff e outros cientistas, não há nenhuma evidência que sustente tal crença, apesar dela continuar sendo repetida diariamente na imprensa, na cultura popular e nos consultórios médicos.
O que eu tenho, então? Segundo o DSM, uma doença de causa desconhecida porém ainda assim orgânica, que atinge 7% da população estadunidense, de acordo com seus próprios critérios. Isso mesmo: 7 em cada 100 pessoas estão deprimidas nos EUA, com os critérios da APA, e no Brasil o número, segundo o site do Ministério da Saúde, é de 15,5% (o mesmo site, que não indica fonte para nenhum desses dados, afirma que as causas da depressão são “genéticas” e “bioquímicas”).
Bom, se é isso, então vamos medicar. É isso que estamos fazendo: os antidepressivos e estabilizantes de humor tiveram um aumento de 17% nas vendas em 2020 e 11,6% em 2021, sendo os primeiros os medicamentos mais vendidos no período, e os ansiolíticos (calmantes) em segundo lugar, segundo levantamento do Conselho Federal de Farmácia. Nada a ver com as pessoas terem sofrido um terrorismo psicológico e um isolamento social acachapantes. Apenas uma doença de alta prevalência e com tratamento certeiro.
Allen Frances, médico responsável por conduzir a força-tarefa que redigiu a quarta edição do DSM, vendo o “monstro sair do controle” escreveu o livro “Voltando ao normal”, com o subtítulo “Como o excesso de diagnósticos e a medicalização da vida estão acabando com a nossa sanidade e o que pode ser feito para retomarmos o controle”. Ele afirma que “transformamos problemas cotidianos em transtornos mentais”.
Nessa entrevista, ele indica a fonte do problema: “Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução”, uma afirmação um tanto atrasada, considerando que o DSM 4 de Frances já era parte do problema. Como um Simão Bacamarte (personagem de “O Alienista”, de Machado de Assis, que passa a internar todos como loucos) arrependido, Frances diz ter ironizado seus colegas redatores do DSM 5 afirmando: “vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão.”
Bom, qual é o critério? Quem traça a linha entre “normal” e “doente”? E o que fazer com essas “doenças” que assolam 7, ou até 15% da população de um país? Robert Whitaker, ao se fazer essas perguntas em sua obra “Anatomia de uma epidemia”, as coloca sob um enfoque supreendente e óbvio: se consumimos mais remédios psiquiátricos do que nunca, e se esses remédios curam essas doenças, por que então há mais doenças do que nunca? Ele continuou fazendo essas perguntas junto a outras pessoas no blog Mad in America, cuja leitura recomendo, bem como a sua versão brasileira, o Mad in Brasil.
São essas perguntas que rondam minha cabeça há muito tempo e, hoje, quando passo por um momento da vida em que me enquadro em todos os critérios diagnósticos de transtorno depressivo maior do manual do Simão Bacamarte moderno, reflito sobre o que me diz minha bem intencionada amiga: eu deveria fazer alguma coisa para me curar. Ok, mas o quê? E do quê? Quando a gente tá “no fundo do poço”, como se diz, ficamos bem suscetíveis às “saídas mágicas”, mas, como admitiu nosso Simão Bacamarte arrependido “…os laboratórios estão enganando o público, fazendo acreditar que os problemas se resolvem com comprimidos. Mas não é assim.”
O que sabemos já é que de “ateórico” não há nada nos diagnósticos do DSM e nem nos tratamentos propostos. Continuemos o debate…